30 setembro 2003

peregrino

O dia entrou dentro de mim, como tempestade sufocante, onde o simples acto de respirar envolveu esforço e coordenação de movimentos. O existir fugiu ao instinto monótono do viver.
Os estímulos cegaram-me e comandaram-me até à exaustão.
Procurei o silêncio, como quem tenta, em desespero agarrar uma bóia de salvação, mas nem esses gritos de naufrago me devolveram auxilio. Senti-me embrulhado em onda gigante, onde o sentido deixou de existir.
As cores insistiram no cinzento em tons de azul negro, e eu nem sentia forças para procurar ar e para colocar os olhos noutras cores.
Prestes a entregar-me, como quem surge do nada, oiço finalmente o mar em sons de abraço que se envolve no areal de praia deserta.A tempestade acalmou e transformo-me em palavras.
O dia terminou.
Agarrei num livro de páginas brancas e os gestos desenharam palavras que emitiram sons de um grande suspiro.
Voltara finalmente a reencontrar-me. O Tempo transformara-se noutros ritmos e os pensamentos, envoltos em fumo, dirigiam-se para o vazio em passos de peregrino e em sons de batuque, como quem invoca os espíritos.

29 setembro 2003

fusões desencontradas

Fiz e desfiz o quadro que me andava a pintar cores sem desenho.
Nasceu com impulsos cubistas, recheado de traços criados com gestos cegos que se reviam em cada ponto de fuga.
Encheram o espaço com uma guitarra, um livro, uma mesa e aroma de café cachimbo. Em névoa cinzenta estava um rosto que me olhava e se olhava. Sorriso e lágrima de uma mesma cor, entre o azul e o vermelho.
Números, poucos. Datas, algumas. As suficientes para me estragarem as sombras que revoltadas quiseram ser verdes!Foi o verde que estragou o quadro!

26 setembro 2003

aqui há gato!

Sonhei que era um gato, que dormia dentro de uma lata de tinta, cor de azul velho, manchada de amarelo (daquele amarelo que não se mistura com cor alguma…amarelo amarelo…com alguns tons de vermelho!), (tenham paciência com o autor, tem muita dificuldade em decidir-se!)
O gato, besuntado de cores, saltou para dentro de um quadro enorme de MIRÓ e rebolou-se, espreguiçou-se em enorme satisfação de liberdade criativa.
Acordei sobressaltado, mas reconheci um enorme sorriso escondido na alma.
Dei comigo a pedir desculpas ao artista, quase em confissão religiosa “ …mas que culpa tenho eu, de coabitar com um gato que me salta do sonho…”

25 setembro 2003

cores perdidas

Tenho pena dos dias em que perco a capacidade de me espantar.
A culpa é certamente minha, mas não consigo insultar-me por perder a sensibilidade de descodificar os sinais que andaram a esbarrar na minha indiferença. Há dias assim. Esqueci-me de afiar o lápis e de lavar os pincéis. Mas a paleta está lá cheia de cores que não vou mais utilizar.

24 setembro 2003

a máscara

Há mascaras de várias cores, para vários momentos e ocasiões.
Todas elas enfermam de serem sombras que filtram a expressão e o sentimento, mas nunca o olhar.
Tenho a tendência de, ao acordar, como quem coloca os óculos para focalizar a existência que o rodeia, de me encobrir com uma máscara e andar com ela hora após hora.
Triste hábito de quem se procura e coloca os olhos no chão com medo de fixar as cores que o dia lhe oferece. É uma espécie de cobardia de quem se sente bem na escuridão, porque aí não tem necessidade de focalizar o olhar. Mais do que uma defesa, é uma fuga. A máscara é o peso da fantasia que nos alivia da angústia de não saber o que fazer, tal é o estado de desorientação que nos imprime o dia.
O sentimento de fuga adensa-se com o cansaço, é verdade, mas também é verdade que a fuga não nos leva a lugar nenhum, nem sequer nos serve de consolo.
Isto tudo, para chegar à conclusão de não saber se o que escrevo, o que pinto ou o que sonho, sou eu, ou os olhos da máscara que se me cola ao rosto.

23 setembro 2003

vertigem

Sou impelido para a fantasia e atropelo-me entre os vazios que me preenchem o sonho.
Perco-me na cegueira do reencontro com as certezas que nunca tive e faltam-me as forças para me erguer e caminhar pelo Mundo.
Reflexos de espelho que não me olha e que recusa o sorriso.
Ritmos que se esvaziam, como quem sente a agonia do Mundo a girar em vertigem.

22 setembro 2003

labirintos

As palavras que me envolvem o Eu começam a incomodar-me.
Criam uma teia de labirintos que se erguem como muros.
Prendem o olhar e asfixiam-me no enredo que a Vida me destinou.

19 setembro 2003

um pedaço de universo

Pintei uma flor que se reflectia em sombra multicolor.
Era uma flor alegre que sorria a felicidade de ser um pedaço do Universo.
É impossível imaginar o Universo sem aquela flor, que cheira a rosa e a alecrim.

18 setembro 2003

erro de cálculo

Quando o que pensas não cabe no desenho, pinta reticências e verás a forma em que se transforma o sonho.
"Conclusão lógica de um matemático poeta: é preciso três pontos para desenhar um sonho!”
Foi nesse instante que o matemático, na sua lógica de poeta, sentiu pena dos povos que não têm escrita para desenhar os sonhos…
Coitados dos povos que precisam de escrita para fixar o sonho, pensou o filósofo do povo que não desenha palavras…

17 setembro 2003

monólogo de um anjo

Olhei uma árvore que me disse: abraça-me!
Olhei uma gaivota que me disse: acolhe-me!
Olhei um homem que me disse: afasta-te!
Abracei o homem, senti-me árvore e voei!

16 setembro 2003

o livro que voava

Olhei o céu negro da noite.Pintei-o com as páginas brancas de um livro que voava de mão em mão. Desenhei-lhe as palavras de um pensamento e imaginei-lhe uma história.O livro passeou-se de alma em alma à procura de pensamentos de outros que pintavam o céu.Vidas depois o livro regressou às mãos de quem o largou a voar. Vinha recheado de páginas, de histórias e de sentimentos.Nesse dia não houve noite…

15 setembro 2003

tela

Acordei a rever as vidas que me cruzaram os caminhos.
Revi sobretudo paisagens, humanas umas, familiares, outras, de afectos muitas.
Senti calor, como quem pega o cachimbo prestes a terminar a cumplicidade com o fumador.
No fumo e no aroma ficaram as recordações.
São estes pequenos instantes que nos recolocam na Vida, sem receio de olhar para trás. Há infinitas imagens que nos moldaram a alma e os olhos.
Os nossos caminhos estão plantados de sentimentos e de emoções que se regam com a luz do nosso olhar.
Por isso quando acordamos e abrimos o Ver, damos conta da enorme tela branca que o dia nos oferece para pintar.

12 setembro 2003

palavra evaporada ao som do Jaz

Procuro uma palavra.
Uma única palavra que transmita a revolta que engulo em sons de saxofone numa noite escura, frente ao mar agitado.
Desenho na areia palavras e imagem sem luz.
Sei o que o desenho me diz, mas ninguém o vê.
O mar apagou a palavra, levou-a para longe, transformada em espuma que se evapora na luz da manhã.
Procuro a palavra que me contorna a alma, uma única palavra que desenhe todo o peso da minha solidão!

11 setembro 2003

terrorismo da indiferença

Hoje, 11 de Setembro, ano dois (*) do Século XXI (2003), morreram 3000 pessoas vítimas do TERRORISMO DA INDIFERENÇA.Morreram, sem rosto, sem nome, sem MEMORIAL!Amanhã, morrerão mais 3000, que caem uma a uma, sem grito, sem lágrima, Guerrilheiros sem nome, sem farda, mortos em batalha de sobrevivência.
Olhos esquecidos, almas pedidas mortas pela humanidade!

(*)Nota: O autor, não resistiu, neste pequeno texto de desabafo a que o seu inconsciente se permitisse a fixar na palavra alguns laivos de futurismo. Resignou-se aos senhores do Mundo e acreditou que mais tarde ou mais cedo, a hipocrisia do poder, transformada em arrogância, venha a assumir-se como senhora do Tempo. A tragédia que assolou os ditos senhores em 2001, à semelhança de tempos idos, irão, na óptica resignada do autor, levar a ajustamentos do calendário, que nos rege a alma. Assim escreveu ano DOIS do século XXI, para evitar ter que, certamente muito em breve, rever o pequeno texto, que lhe surgiu em forma de grito. Aqui fica portanto o esclarecimento, aos olhos de quem lê, que não foi erro de cálculo, mas uma, tropelia do inconsciente de quem também desenha com palavras.

09 setembro 2003

sem máscara

O que o poeta desenha com os olhos, não é mais do que o instinto que lhe vai no gesto.
É como uma pedra, lançada ao Rio.
A água desdobra-se em círculos a desenhar o momento do reencontro.
A imagem é o reflexo do instante que surgiu sem introspecção e sem mascara.
É reflexo de luzes que vem do nada.

08 setembro 2003

exercito sem nome

Quando mergulho na realidade, sinto a revolta de ter andado fugido no sonho e não ter agido, em sons de luta e juntar-me aos guerrilheiros da Humanidade.
Eles andam por aí fardados em exercito sem nome a distribuir afectos e a criar o Homem Novo.

04 setembro 2003

luz

Ah, como é bom acordar com o sorriso das cores, sem o peso da densidade interrogativa da tempestade, que ofusca o desenho inibido de dançar na tela.

03 setembro 2003

árvore invertida

Sonhei com um “embondeiro”, aquela árvore misteriosa e disforme que salpica a paisagem africana.
Quis ser um dos ramos que absorve a atmosfera densa, cheia de silêncios e perguntas sem resposta.Sonhei com um “ embondeiro” que se transformou numa Cruz que se envolve na dor e nas lágrimas de sangue que fotografam a Humanidade com a luz e os gritos de trovoada.
A imagem que o sonho me deu, foi uma árvore invertida de raízes a sangrar, viradas para o céu.
O quadro que pintei, fixou uma imensa savana, em tons de toranja vermelha polvilhada de cruzes em oração de desespero incontido.

02 setembro 2003

o carrasco das cores

As cores não mudam. A imagem fixou-se no quadro, que transpira tédio e aborrecimento.A culpa é de quem aprisionou as cores no quadro em tons de sofrimento.

01 setembro 2003

boleia

Mergulhei dentro de mim, envolvi-me em sons de musica e fugi do Mundo.Andei por aí de boleia com Fernão Capelo Gaivota.

não uso tempos, nem agendas ou instrumentos outros que meçam pedaços do existir. é jeito meu. por isso passar de um ano para o outro é cousa...