31 março 2004

o meu Pinóquio ou a marioneta vagabunda, ou o que quiserem porque o titulo nem sequer devia existir…

O tempo e a memória andam a enganar-se em forma de saltimbanco, que se finge ilusionista de emoções.
Escondem-se um do outro, como amantes adolescentes que amuam de tanto se quererem. (hoje ando a desbaratar palavras, não há duvida que “adolescentes” está a mais neste retrato)
Há falta deles, transformo a história que me conto e dou vida ao Pinóquio, sem dar conta que ao transformar-me na personagem que me foge em cores, sou eu que sou marioneta vagabunda perdida na história e no tempo.
Sinto-me bem no conto, e por ali fico a passear em terras outras, até que os amantes amuados se beijam e eu volto a ter gravata e fico a olhar o meu chapéu de palha, roto do sol em cores de seara de trigo, abandonado, junto ao espantalho que me sorriu por momentos, poucos, mas suficientes para me sentir bem dentro da minha própria memória.( prometo que vou aprender a escrever parágrafos mais curtos e menos confusos…)

30 março 2004

o barco que se obrigou a Ser.

Tocou-me ao de leve, primeiro, em ritmos de despertar, em espaços menos cuidados, até me forçar a abrir os olhos e fitá-lo de frente, meio sonolento e rabugento inteiro.
“ Que me queres a esta hora?”
“Vem!”
Fui de corpo.
“Agarra-me e pinta” ,sopra-me o lápis irreverente, que me levou sonâmbulo até à tela que me espreitava na penumbra.
“Agarra-me e pinta” ,insiste, em jeito autoritário mas de sorriso ameno, terno, em forma de conquista, mergulhando em imagem todo inteiro dentro de mim…
Agarrei-o e naveguei barco à vela em “azuis-manhã” que encheu o horizonte em “esperança-névoa”.
No fim, quando as cores já não eram só minhas, deitei-o como quem aconchega criança, à noite depois da história.
Eu, fiquei ali, a olhar o barco que não se resignou a ser só Sonho e partiu deste, para o Mar.

29 março 2004

encontro com Ele, com o rio...

Revisito-o, escuto-o e vejo-o, mas não são os sons, a melodia, a cumplicidade dos tons, que me inspiram, é a sua quietude. Corro, em fuga de mim, à procura do limite, com ele, e para ele. Teste do olhar, alimento do sentir. Fundo-me na paisagem, na imagem, e o limite ali está a chamar-me, a ouvir-me a viver-me…

28 março 2004

tráfego de migalhas, de vida.

Criança negra,
jogada fora, em picada escura,
de pó,
cega,
perdida.
Sem lágrima,
pedaços de corpo,
morto,
para outro,
esquecida,
sem dó.
Dor ao longe,
fora de vista.
Migalha de vida,
criança negra,
caída.

27 março 2004

quando as palavras nos falam baixinho...

Não estudo as palavras, gosto de as inventar, de lhes trocar o sentido, (o que não é tarefa de todo própria para quem mergulha em números e tarefas outras, dia a dia, todo o dia.)
Hoje (re)inventei uma palavra, ou melhor, foi ela, a própria, que me segredou, ao emprestar-me o seu sentir, a sua origem, a sua essência, que acalmar, queria dizer:
estar com a alma, estar dentro da alma… (para quem não sabe, que fique desde já a saber, as palavras falam e sentem sozinhas, vivem por elas, só nos emprestam o sentir)
Só me disse isso, a matreira, porque não deu resposta, só sorriso, quando lhe perguntei: na nossa, ou de outra alma? Talvez outro dia, mais calmo, ela me diga afinal, qual é a alma que acalma…

25 março 2004

esboço de mulher

Olho-te,
desenho-te perfume.
Altiva,
de mãos postas em reza,pensas,
não oras,
moras,
ausente.
Mistério fêmeo,
efémero,
fugaz,
crente.

prazeres

Olho o livro, em distância de respeito, acaricio-o, como quem adivinha prazeres.
Hesito!
Tenho-o na mão, peso-o.
Antevejo histórias, sentimentos e angústias partilhadas, solidárias.
Decido-me, e lúcido mergulho, dentro-fundo no Ensaio do Mestre…

24 março 2004

desenho sem cor. vermelho!

Engulo palavras sem sabor,
ásperas,
ácidas,
translúcidas.
Lágrimas-amêndoa,
Que pingam, em ping-ping
lento,
de dor,
lúcidas!
Traço risco,
gravado,
fundo,
Vermelho-sangue
escoado em lava que pinga,
em ping-ping de raiva,
mudo,
sujo,
em vergonha que esconde do espelho,
palavra que desenha "amor",
que pinga,
em ping-ping,
sem cor

a papoila

Encontrei uma papoila cor amarelo-tulipa. Estava triste e sozinha, porque todos lhe chamavam tulipa e ela queria ser somente papoila, mesmo que amarela…
(versão do patinho feio, contada a uma criança que se julgava feia...)

23 março 2004

o silêncio da árvore

Abracei-me a uma árvore para lhe ouvir os segredos e o murmúrio, de quem assiste paciente, à loucura da paisagem que indiferente, atropela o tempo.
Nada me disse e desfolhou-se em vermelhos de-nuvens-ao-fim-de-tarde.
Insisti com questionar permanente e contínuo, o porquê de tamanha dor…
Não murmurou, nem segredou…
Remeti-me ao silêncio, coberto de verdes-escuros, a aguardar a cor de uma flor, apreensivo com o amanhã, porque isto das árvores ficarem mudas tem que se lhe diga...

22 março 2004

desabafo

Normalmente não me exalto, e mastigo com serenidade, paciência e algum gozo, confesso, quando confrontado com o que não entendo, obrigando-me a accionar os mecanismos de auto-controlo, que a idade me ensinou.
No entanto dificilmente consigo digerir frases ocas e saudosistas do tipo “ no meu tempo é que…” ou “ esta geração, meu Deus…
É de mais para mim e sinto-me descontrolado, irado com vontade de abanar quem as vomita.
Será tão difícil de perceber, que esta geração, seja ela qual for e em lugar qualquer, é única e exclusivamente aquilo que conseguimos criar?
É o nosso último estado de evolução.
Somos todos nós, os de hoje e os de ontem a olhar o amanhã!
O Jovem, criança ou não, é o elemento mais velho do nosso ramo familiar. Não o mais novo. O mais novo foi o primeiro!
Não este, que está a olhar com tudo aquilo que os outros viram e lhe deixaram no Ver, e no Sentir.
Todos não seremos suficientes para lhe orientar o olhar!
Ajudem-no a correr para diante, em vez de lhe cuspirem o Eu!

21 março 2004

distrações

Estava tão absorto, nos meus passos, nos pensamentos e na minha utopia de imaginar o renascer de uma nova humanidade que nem os bons dias dei ao rio que me acompanhou na caminhada. Vou ter que voltar, pelo menos para lhe dizer obrigado.

18 março 2004

o sorriso da personagem

Um autor…
(não ficava nada mal, seres um pouco mais ambicioso, digamos, mais abrangente…Certamente que o que pretendes transmitir, vestia-se bem na palavra “criador”…)
Um inventor, contador de histórias… (pronto, já percebi, pretendes que quem vir a palavra lida a “estique” conforme bem entender!)
Será que é desta?
Vossa Excelência dá licença?
Um contador de histórias tem toda a autoridade de saber o que a sua personagem esconde, entre a pontuação (reflexos, tonalidades, texturas…), mas nunca saberá o que ela esconde nas palavras ditas (cores, perspectivas, expressão, olhares…)!
(confessa lá, o que realmente queres dizer é que não sabes o que escreves! eh! eh!)

17 março 2004

caixa de cartão

Tenho uma caixa de cartão onde guardo o meu olhar, que fica a criar cores para me contar em palavras…
Todos os dias, sento-me fixo no longe a ouvir as histórias que ele me conta apenas com sete palavras, misturadas e segredadas em brincadeira de criança.

16 março 2004

cura

Sou pedra esculpida, renascida, em Mar, moldada, removida.
Espreito a noite, farol que me acalma, a dor, a amargura, no infinito, em sinal de procura.
Contraste de luz que aponta afectos,ternura.
Olho direcções, em cores que se cruzam, que hesito.
Palavras ocas, que dançam, se abraçam e loucas, se curam.

15 março 2004

raiz morta

Hoje, simplesmente, não sei,
analfabeto de mim,
não sei de onde vim,
para onde vou,
ao que vim.
Sinto-me árvore desenraizada à procura de alimento,
desesperado,c
onfuso,
difuso.
Sou sentimento,
raiz de braços infindos,
abertos,
inseguros,
sedentos.
Só nascendo outra vez,
replantado em terra outra,
porque esta jaz morta,
em sangue do mundo,
decapitado,
humilhado,
mudo.
Morreu-me o olhar puro que se desfez,
caído no fundo.
Não chamem por mim,

Hoje morri,e amanhã também...

14 março 2004

guardião

Gosto da Cidade Grande e de lhe emprestar os passos à procura de luzes e de espaços que só ela sabe pintar, mas só (des)encontro quem os não procura e os únicos olhos que me fixam são os que me guardam.

13 março 2004

escultura

Esculpi uma mão em pedra escura que agarra pincel ignorante que se suja todo nas cores que lhe escondem a sombra.

12 março 2004

interiores

Sento-me em mesa resguardada, em fundo e em fumos interiores e deixo que os pensamentos me fujam em vazios surdos que me gritam

acordar

Estado do sentir I
Entro na manhã e visto-a.
Visto-me todo, com o entusiasmo de a percorrer e preencher.
Estado do sentir II
Entro na manhã e visto-me.
Visto-me todo, com os olhos postos nos gestos ritmados em tarefas do cumprir.
Metamorfose de mim
Entro na manhã e visto-a.
Visto-a toda em metamorfose que se movimenta em voo lento e suave em busca do Sentir…

11 março 2004

grito

Indigno-me com os gestos que não consigo travar.
Cego-me na intolerância da dor que Os move,
Indiferentes,
impunes.
Ergo o vazio que me cobre de morte,
e choro!

estilhaço

Não me peçam imaginação para pintar grito que nasce sussurro junto ao chão,
que mina,
cresce,
sobe,
até explodir no coração.

Não é sangue que vejo,
Não é ódio que sinto,
É vento, tempestade,
indignação.
Porque te matas, homem sem ambição?
Porque te estilhaças,
sem amor nem perdão?

Para onde vais,besta?
Porque corres sem cabeça,
e do (des)amor,
fazes festa?
Porque rastejas, verme?
Diz-me !
Porque te cegas?
Porque te matas?
Porque tens alma, se não treme?

( as palavras sabem mal, a fel, predem-se no vazio, que me chora o ver. são martelo, são cal viva que se chora, que se grita. o vento cheira a morte que se vai embora, sem alma, sem norte...)

10 março 2004

o povo da árvore

Encontrei um povo que vivia numa enorme árvore que espreitava as nuvens e o mar. Não se lhe conhecia feitos históricos, actos de bravura ou conquistas além-mar, além terra ou mesmo além árvore. Era discreto e contemplativo este Povo que tinha como missão OLHAR, compreender e interpretar.
Cabia nele todo o Universo.
Todos os dias, o Mestre descia da árvore e escrevia as descobertas na areia límpida da praia…
Questionado um dia sobre a forma como o seu Povo conservava e transmitia o conhecimento, o Mestre suspirou e disse com voz serena:“ Foi a única forma que conseguimos encontrar para armazenar tudo o que apreendemos do cimo da nossa árvore...”

09 março 2004

paleta de amarelos e de vida

Pinto sem tela, mistura de paleta de amarelos, e escondo-me em campo de trigo que se perde ao fundo em azuis que se resguardam do Sol.
Sombra, só a do pássaro em que me transformo para sentir todo o calor das cores que Vêem a Alma.

08 março 2004

labirintos

Escrevo sem parar,
folhas mortas,
sem alma,desordenadas,
pintadas de raiva, sem sentido.
Piso-as,
sujo-as,
desentendo-as no que me gritam.
Uma a uma,
Moldo-as,
transformo-asem labareda que se esfuma,
caindo...
Caminhos trocados
labirintos…
cobertos de espuma.
Cenário sem actores,
fingindo…

07 março 2004

inventor (in)sofrido

Queria inventar palavras que se transformassem em vento e cantassem o fado,
mas os pássaros que voam brancos,
não me trazem senão o olhar de um mar gigante em forma de negro,
criar sons de borboleta mensageira de flores que se beijam às escondidas,
mas a guitarra só chora e não canta,
mas sinto-me preso,
inquieto e pedra ferida,
sem voz nem poema,
a desenhar lágrima colorida…

06 março 2004

dialectos musicais

Não sei escrever musica, e muito menos reconheço as notas com que falam, no entanto nasceu em mim uma melodia, onde os personagens eram um violino e um saxofone. Falavam em sons geométricos, em tons de azul aguarela. O sax voava em sons quentes e o violino preenchia as sombras que não cabiam dentro de mim. A história que contaram, só eu a ouvi.

05 março 2004

silhoeta inacabada

Sintetizo silhueta de mulher em um só traço numa só cor.
Imagino mil e uma tonalidades que combinem com o traço e que o envolvam e não me decido por nenhuma.
Fica inacabado o quadro, mas a silhueta, essa pôs-se a dançar em ares de gozo aos sons de melodia muda…

04 março 2004

tinha tempo...

Como quem abre uma caixa de chocolates e retira um com uma mão e outro com o olhar, dei comigo entre duas reuniões e com tempo…
Entre o conforto do táxi e o envolver-me na multidão, optei por seguir-me nos passos e deixar-me ir com o movimento, mimetisando-me nos cheiros, nos olhares, nas vidas de todos os que comigo se embalavam nos subterrâneos da Cidade Grande.
Movimentei-me na multidão, em pedaço dela. Tinha tempo…
Inventei uma história para cada uma das vidas que se isolavam do olhar e o escondiam no chão que se orientava em carris infindos, em movimentos rápidos como quem transporta destinos.
Senti-me desconfortado com a frieza do Ver de cada um e não resisti em vasculhar imagens de outros tempos, de outras paragens, de outras emoções e calhou-me na sorte a recordação de uma menina de sorriso atrevido, em terras de Africa, e que me fazia corar com o olhar e deixei-me navegar. Tinha tempo…
Quando voltei à multidão, a minha saída estava algures entretida com os passos apressados de outros, mas não os meus. Saí a correr em paragem próxima e corri desesperado para um táxi. Olhei relógio minuto a minuto, transpirando cada segundo que me corria nas veias.
Atrasado, chateado, comigo e com a multidão, limpei a angustia e fixei-me em cada um dos rostos que me penetravam com interrogações. Voltei ao meu mundo, ao meu espaço, longe da multidão, à ausência do sentir, do Ver e do tempo…

03 março 2004

muro suspenso

O lápis desliza em formas violentas de muro, que se suspende sem portas nem frestas nem transparências e que se enrola em torre de Babel, que se esconde em luzes escuras, quase a cair do quadro.
Não há árvore que o transponha em sombra, não há pensamento, sentimento, poema, tempestade ou emoção que demova o quadro que me foge da mão.
Desenha-se sozinho.
Autoritário.
Gigante.
Paro cansado, transpirado, ansioso e olho em sorriso extasiado de frente para tamanha aberração suspensa em “cinzentos-prata”, fragilizada pela sua própria arrogância e imponência.
Zangado, penduro-o de pernas para o ar!

02 março 2004

ás escondidas

Andei a brincar às escondidas com a cor de uma laranja. Procurava textura original, com reflexos de tarde amena, sentado à sombra de um pinheiro manso (esta referência pode ser absurda, mas o facto de estar sentado, naquele preciso lugar, dá desde logo uma tonalidade única, sem a qual estas palavras nunca existiriam).
A brincadeira tornou-se séria quando a laranja se escondeu no Sol e fugiu em tons de "vermelho sangue".
Senti-me traído e contentei-me com a sonolenta Lua, que tendo pena de mim, segredou-me um olhar e escreveu nas estrelas “ não se deve confiar numa cor que cabe inteirinha numa forma. Quando se brinca com uma cor devemos pensar no mar, no céu, no deserto, no dia ou na noite, para que ela não se envergonhe da sua nudez e se entregue…”

auto-retrato numa manhã fria

Pintei o meu auto-retrato em formas cubistas.
Coloquei-me à frente de um espelho (sem especial cuidado com as cores da envolvente e muito menos com a moldura), fixei-me na imagem e lancei uma pedra.Num instante de magia, lá estava eu multifacetado a sorrir-me de espanto. Terminado o reflexo, desfeita a imagem em sons multicolores de queda desordenada, estilhaçada, o que ficou pendurado em imagem foram os pedaços que sobraram de mim.
E se a pedra fosse outra? E se o arremesso fosse outro?
O quadro tinha outra imagem, e as sobras de mim outras cores…

01 março 2004

o jardineiro desatento

A forma menos passiva de estar na vida é a da entrega.
Digo isto com toda a convicção que me vai na alma, porque a entrega, não é mais do que semear incessantemente sinais, aos que nos rodeiam. É como se estivéssemos permanentemente a ensinar ao nosso companheiro, aos nossos amigos, aos nossos colegas um modo de agir, um modo de olhar a Vida, e isso não tem nada de passivo ou de submissão. É precisamente o contrário, é uma atitude de orientação e de indicação de caminhos e de opções, onde a escolha é de cada um. É por isso que se torna aliciante a relação com os outros, é por isso que nos dirigimos numa direcção, num sentido. É o que nos faz levantar de manhã e sabermos que temos uma tela inteira para pintar as nossas cores, o nosso poema. A vida assim torna-se entusiasmante e uma Aventura! Não se deixem cair na tentação da submissão, isso sim trás angústia e desespero e minam uma relação humana. Daí a necessidade do olhar, do estar atento, do observar, para detectar que tipo de sinal é que vai produzir uma determinada reacção.
É como um jogo de luz e de sombras.
É como assistir ao nascer de uma flor que precisa ser regada na medida certa.
Cada flor precisa de um cuidado individual. Não há uma única rosa com a mesma cor, mesmo as brancas!
Tudo isto deixa de funcionar, quando nos pomos no lugar da flor, à espera dos cuidados do jardineiro desatento.
Vamos morrendo lentamente, isolados do mundo e da Vida.
Vezes sem conta olhamos o vazio e sentimos lágrimas incontidas , mas isso faz parte do poema e do conforto de conseguirmos criar o nosso próprio universo, e de sentirmos que a nossa existência tem um significado e um objectivo que ultrapassa a nossa própria individualidade.

não uso tempos, nem agendas ou instrumentos outros que meçam pedaços do existir. é jeito meu. por isso passar de um ano para o outro é cousa...