31 março 2005

terra

Deixo-me invadir pela terra, castanha, escura, lavrada e solto-me pó, com o vento…
Não há liberdade maior do que ser pó de terra à procura de semente e viajar em gota de água.
(já imaginaram a quantidade de cores em que se pode transformar um grão de pó de terra-castanha-escura? Verde-de-prado-novo, vermelho-de-papoila, violeta-dela-própria, de amores perfeitos, cada um com a sua, amarelo-sol, continuem, continuem….ou escolham uma, não há nada melhor do que cada qual escolher a cor em que se transforma quando num dia ao acaso, se sentem grão de pó e liberdade suficiente para voar sem destino)

30 março 2005

pinturas confusas, mas cheias de vontade de dançar

Pintei folha de papel de aguarelas , só com letras, não de cores, mas de cor, só. Cor de letra azul-de-céu-de-verão. Só falta mesmo elas ( letras) perceberem o que me ia na alma e juntarem-se todas sem ficar nenhuma fora do papel que se ofereceu, confiante à pintura ( coitado...).
Vou tocar o meu violino-trompete-que-chora-sons-de-guitarra, sempre é mais divertido, vê-las dançar no branco-nuvem-que-não-chorou-ainda, em compassos de sonho em noite que não se pensou, do que senti-las tristes e baralhadas com o sentir que se não disse…

26 março 2005

voares

Hoje não há histórias.
Nem todos os dias as têm, nem é necessário acontecer conto ou poema para o dia ser especial (ando a apurar o sentir para todos os dias serem únicos, mas tem-me levado uma eternidade),
o hoje,
foi um voar rasante num campo de girassóis que se vestiram todos de branco-cegonha.
Quase apetecia pintar o que o olhar sentiu; uma ovelha, sentada, toda debruçada de atenção, a ouvir a papoila ( não, uma, mas aquela que ali estava sozinha, como gota de sangue naquele enorme lençol de girassóis brancos), a ensinar-lhe como se deveria comportar perante um poeta que não sabia escrever e só sabia sonhar…
Talvez ainda lá estejam amanhã, pode ser que assim, afinal haja história, mas não hoje que o voar só tinha ir…

25 março 2005

sem carta de marinhar

Não sei o que me prende hoje a esta cadeira, entre paredes e estantes multicoloridas, talvez seja o fumo-aroma-cachimbo-que-afaga-um-gato-sem-botas, que me pensa, lento numa procura intensa da descoberta-do-que-me-trouxe-ao-existir
Vagueio na humanidade, como o sangue se navega nas minhas veias...
Quando um de nós parar, desistimos ( des-existimos) ambos. Mas o sangue, sabe o que faz, eu não, o que não me impede, apesar de tudo, de me percorrer na humanidade, mesmo sentado numa cadeira, a olhar vazios…

24 março 2005

preso...

Algures, em hora e dia indeterminado do nosso existir, surge ou surgiu um cavalo.
Faz parte do nosso imaginário, mil e uma aventuras, vividas no dorso de um cavalo.
Mesmo quem os receia, viveu um sonho com um cavalo, se não é verdade, imaginemos que sim e deixa de haver espaço a polémicas, que sonhos não têm discussões. São todos verdadeiros!
O meu cavalo, branco e vermelho, de crina-de-lã-trigueira, apareceu-me hoje em galope de vento…
Quis levar-me em corrida sem destino, com as suas patas-de-baloiço a voar, ao som do seu sininho…
Mas fiquei aqui, com as patas presas…
Tinhamos os dias desencontrados...que pena...

23 março 2005

gasto

Gastei-me inteiro no dia.
Gota a gota de mim.
Não me sobrou nada.
Houvesse inteligência, minha e não tentaria em teimosia desenfreada empurrar a montanha. Subiria a sua encosta e de caminho ainda veria o mar e sentiria a brisa a abraçar-me. Assim, estou sem o dia e sem forças, esvaído num nada, aterrador.
Vou fechar os olhos e procurar o sol…

In " Apontamentos para um manual da serenidade ", ou como a harmonia se deve procurar no ponto que absorve a menor energia, num total empenhamento do existir...

22 março 2005

uma mão cheia

Tenho a mão-cheia-de-chuva, e não sei o que fazer com ela, se bebê-la, se a largar no céu, na terra ou semeá-la nascente…
Ela bem tenta dizer-me qualquer coisa, mas não lhe conheço as palavras... julgo entender que “ caí do ninho...”, por isso desenhei-a pássaro e larguei-a a voar.

Não voltou, devo ter entendido bem o falar da chuva que se aconchegou na minha mão...

21 março 2005

instantes mágicos

Em silêncios,
movimentos lentos,
reflexos,
despes-te , de artefactos...
Olhas-te,
em ausência,
tua,
sensual...
Soltas-te dos enfeites,
um brinco,
outro,
um colar,
uma pulseira,
pedaços de ti,
pedaços de jóias esculpidas,
em lágrimas escondidas,
uma
a
uma,
soltam-se de ti,
nua.
Olhas-te em refugio,
teu,
só teu…
É momento mágico,
o teu por-do-sol,
quase erótico,
quase poema,
quase lua…

( a mulher tem dia a dia este instante mágico em que se entrega a uma metamorfose pura, num momento mágico só dela, é o instante de ser silêncio, de ser sua)

19 março 2005

amuos

As ruas da cidade grande escorregaram todas para o rio e ouviu-se um grande silêncio. Depois tocaram os sinos e todos acordaram. Foi um trabalho louco repescar todas as ruas. Não queriam vir, consta que se zangaram por ninguém lhes ligar, apesar de andarem todos de olhos no chão. Voltaram cheias de cor, lavadas. Pena foi os habitantes da cidade grande, não terem escorregado também, andam muito descoloridos a fingirem-se de pombas-gaivotas, mas as cores deles são outras.
Cada um deve vestir a sua própria cor para haver arco-íris…

18 março 2005

desenhos

O desenho de uma árvore é uma eternidade de linhas que se escondem na terra e se pintam no céu.
A que desenhei hoje fugiu-me do papel, tão ciosa que estava de fazer cócegas nas nuvens…

17 março 2005

tropeções

Tropecei no horizonte.
Linha irrequieta, esta que insiste em nunca se passear no mesmo local…
Atrevido, puxei-a com olhos-de-palhaço-criança-em-hora-de-recreio ,enrolei-a num enorme novelo-de-encantar e segurei-a com o olhar.
Não era de cristal esta bola-horizonte-em-tons-de-papoilas-que-chegaram-antes-das-andorinhas, era como... cabelo, de mulher que se ama, entre os dedos, em penteares de ternura…
Mas chegaram as papoilas, com ou sem horizonte, caído ou levantado, pouco importa.
Chegaram!
Vermelhas-sangue-de-sol-posto-em-terras-de-áfrica!
Devem ter vindo do mercado. Cheiravam a novidades, mas eram todas segredo ( podem e devem ler esta parte em sussurros murmurados, quase só olhares)…
Conto, porque o segredo era só delas, não meu…as andorinhas vêm mais cedo (já o sabíamos, disse-o a bola que não era de cristal), só que vêm pintadas de azul…
Fiquei a imaginar primaveras-com-andorinhas-azuis-e-papoilas-tagarelas…
Não, o céu não vai gostar de se ver invadido, assim sem aviso prévio, por outros azuis…
Vai ficar cheio de ciúme, porque vamos todos olhar para ele, mas não para o ver…

É o que dá quando tropeçamos no nosso horizonte…

16 março 2005

tonalidades ao som de uma trompete

Desenhei uma árvore a dançar com um trompetista e deixei-me voar nas cores de um sol tardio que se abraçou à terra e se esqueceu do universo, derretendo-se por inteiro naquele instante…

15 março 2005

talvez cegueira, talvez não…

Sinto-me só.
Não terrivelmente, nem angustiantemente...
Simplesmente só, ou serenamente (estado de alma, ou de sentir com que gosto de pintar os cenários do existir em jogos de absurdos e de silhuetas bailarinas).
No intimo, sinto-me só porque abandonado de memórias (aquelas imagens que nos moldam o carácter e que nos dizem o nome inteiro), como se de um momento para o outro apenas me restasse o Presente e os sucessivos instantes do" acontecer", condenado a reinventar os vazios que preenchem o (des)olhar. Uma espécie de torcicolo neurótico que me impede de olhar para o detrás de mim. Sensação inquieta de quem está em pontas de pés, de costas para um abismo e só lhe resta o defronte.
Talvez seja só hidropisia-de-caminhante-de-olhos-espantados que tudo arrasta, tudo limpa, talvez só cegueira, só cansaço, mas um homem só com instantes, é uma espécie de relâmpago, quando afinal, nasceu estrela, porque a luz da estrela é passado e a do olhar futuro…

14 março 2005

distracções

Ia distraído.
Vou sempre, quando me viajo no Universo, porque vou sem sentido a ouvir as árvores a ralharem-me o existir.
Esta que me falou hoje era um pinheiro-com-perfumes-de-alfazema, cheio de eternidade. Disse-me que ia no sentido errado, que o meu caminho era bem lá mais para baixo, junto ao Rio. Lá tinha todas as minhas sombras e cores que eu baptizei em menino…
Zanguei-me com ele, respeitosamente, por ser árvore apinhada-de-tempo , " caminho é onde o olhar nos leva, não os passos", disse sem convicção a olhar o chão não fosse ela fulminar-me com todo o seu peso de árvore-que-segura-a-terra-no-céu.
Ele amuou e eu também.
Fiquei assim, sem jeito de saber se o meu lugar era ali perto da serenidade, ou junto ao rio que não pára, sempre com pressa de se transformar em Mar…

12 março 2005

procura(s)

Quando procuramos, o melhor, é perdermo-nos por inteiro, só assim colocamos todo o sentido da descoberta na ousadia do querer encontrar…

In "apontamentos para um manual da serenidade", ou com nem sempre é fácil partir com a vontade de chegar…

10 março 2005

como quem dá...

Um poema afinal não se escreve,
nem se desenha,
nem nada.
Um poema oferece-se,
como quem dá uma flor-camuflada-entre-dos-dedos-de-uma-mão-que-acaricia,
mas com os lábios,
ou com o olhar,
todo desarrumado de sentires,
para nos extasiarmos na procurar dos sorrisos que se soltam em cada viagem que nos transporta, aos caminhos por onde ele andou antes de nós…

09 março 2005

sede

Resumi toda a minha vida num pedaço de papel, com letras bonitas, importantes, vaidosas de bonitas. (Já repararam como ficam vaidosas as letras quando contam uma história, mesmo que só caiba num pedaço de papel? Estas não são diferentes de outras letras, por isso estavam todas azuis-de-sorrisos-de-manhãs frescas). Mas estas, estavam para além do sorriso porque o papel dobrou-se em barco-de-papel-com-letras-vaidosas e passeou-navegante todo o dia na fonte do jardim, até se transformar em água-bebida-por-uma-pomba-que-por-ali-poisou …
E foi assim que a história de uma vida matou a sede, ao acaso, de uma pomba que gostava da água da fonte de um jardim...

08 março 2005

atropelos

Pára!
Coloca todo o teu peso, na atitude, clara, precisa de O deixar passar. Solta-o da sombra, não te embales no seu ritmo, na sua força, na sua determinação. Se o tempo te empurra, deixa-o ir, não vás tu tropeçar e perderes o teu próprio tempo, porque o teu, esse, não te atropela…

In “ Apontamentos para um manual da serenidade” ou como devemos aprender a ilusão de não nos deixarmos impelir pelo tempo, para podermos levar tudo que nos cabe no olhar

07 março 2005

hoje...

Hoje, talvez só hoje,
sou cristal de Mar, escondido na lágrima de uma gaivota que se desliza em vento a sonhar ser onda...
Hoje, talvez só hoje,
sou onda despenteada que se dissolve em nuvem a abraçar o Sol...

ah! que isto de ser existência-pura tem que se lhe diga...

04 março 2005

vontades

A lua pingava uma chuva envergonhada. Mais ficou quando lhe dei a mão e sussurrei em murmúrios de poesia, vontades de pintar uma papoila

03 março 2005

embalado em comboio de aço

No balanço,
danço,
sem rede,
nem laços…
Desacordo,
manso,
acordes de trompete
que me soam,
sem cansaço,
uma nuvem azul-baço,
que chove beijos,
em sorrisos palhaço...
Danço,
manso,
sem desejos,
na janela-verde
que me embala,
em abraço...

02 março 2005

desassossegos deambulantes

Passeei na Cidade Grande com passos preguiçosos.
Estava sossegada, nos seus silêncios…até as janelas se divertiam em sombras-de-vidros, com cores atrevidas…
Dilui-me, desassossegado, transformado em sussurros-que-olham-em-ecos-surdos…
Há um choro árabe, quase fado que se derrama em ruas, no olhar, como se a existência se concentrasse inteira num só grito…

não uso tempos, nem agendas ou instrumentos outros que meçam pedaços do existir. é jeito meu. por isso passar de um ano para o outro é cousa...