28 julho 2005

Sim, Senhor Doutor...

As desatenções levaram-me ao trambolhão e ás consequentes maleitas do corpo que, sendo resistente, não foi feito para brincar com as forças da Natureza, e a gravidade, é a gravidade, não há forma de lhe dar volta, leva tudo ao chão, mesmo que não se queira e se acredite que em vidas outras se foi gaivota.
Aparei a queda com o ombro que de tanto se queixar, lá me convenceu que tinha que ir ao médico. O normal era marcar consulta e ser atendido, mas como é normal ter que esperar meses sem conta, desnormalizamos o acto e toma lá Urgência com a dor que ao menos assim, mais hora menos hora temos olhos que nos vejam, radiografia tirada, e papel de receita a aviar se a dor se prolongar.
Está mal o sistema, estamos mal nós que o pomos sempre à prova com coisas de menor monta, mas saúde é saúde e ensinaram os antepassados que com ela não se brinca.
Ainda pensei em afagar as fomes, que o dia fora longo e pressentia longas horas. Não acautelei o estômago, mas um livrito levei não fossem as horas ter tamanho outro que as normais e os minutos se agigantassem.
Vivemos em sociedade, de informação e cartão magnético é coisa do dia a dia. É só pôr na ranhura e lá está o historial burocrático do cidadão. Mas este que resolveu ao fim do dia utilizar o Serviço Nacional de Saúde, mudou de morada e teve que redizer tudo de novo, de sorriso na boca e dor na omoplata.
Seguiu-se a "triagem" em sons castelhanos e novelescos e lá fui de papel branco na mão, com a queixa da maleita descrita em letra para entendidos, para sala outra, à espera de vez.
Esperei, pouco, porque esperar é estar num sitio sem nada fazer, e eu antes de pegar no livro e isolar-me do local, olhei curioso a tentar adivinhar vidas, coisa que gosto desde menino, pôr histórias nas pessoas e no tudo.
De fronte estava idosa de pele gravada de vida enviuvada, em cores negras de morte adiada. Toda ela transpirava dor, incomodação, olhando o tecto, transformado em céu, e em prece de alívio rápido. Fixei-me na pele gretada, a desenhar movimentos de vida de campo, nos amanhos da pequena horta, das galinhas, dos coelhos e das sua quatro cabras, ganha-pão de tapa-miséria precioso, que passeava mesmo com dores de afia-ossos, nos pastos secos, de terra seca. Eram o seu tesouro, as suas quatro cabras, que tratava com autoridade de pastora-viúva e de filhos emigrados…
Senhora Albertina Silva?
Sou eu, sou eu…
Apareceu um vulto alto, sisudo, de bata branca a esconder ganga-de-marca e desconder sapato italiano (que por cá não se sabe sapatear com classe), olhar de águia, austero, predador…
Quem a mandou cá?
Bem Senhor Doutor, foram as minhas dores…
As suas dores? Então a senhora, tem dores?
Tenho sim Senhor Doutor, não…
Onde? Diga onde?
Na perna Senhor Doutor, na perna, é da coluna, sabe…
Ó minha senhora, alguém lhe perguntou de onde é a dor? Se sabe de onde é vá-se embora, a consulta está feita, quem é a senhora para fazer diagnósticos?
Diagno….Senhor Doutor?
Aponte! Aponte onde é a dor!
Aqui senhor doutor.
Muito bem! Agora espere!
Muito bem ,Senhor Doutor!
( esta cena, este acto de vida, indefeso, passou-se em frente de todos, não foi na reserva de uma pequena sala, foi num corredor de espera, ao sabor das humilhações, no indecoro de uma violação da alma, no desprezo de um desafecto...).
Senhor José?
Levanto-me,( ainda com a Dona Albertina no sentir, a imaginar as preces de perdão por tratar tão mal as suas cabrinhas e por tal falha desumana, estar agora a ser ela, tratada como animal sem rosto, nem pasto de sorrisos).
Entre.
Entrei para uma sala. Intrigado. Mais intricado fiquei quando saí , porque fui bem tratado, acompanhado à porta, com desejos de melhoras.
Fiquei incomodado a pensar se seria do cartão, ou se a dona Albertina, era afinal um fantasma, indigente que por ali passara para incomodar o senhor doutor, senhor de diagnósticos profundos, que escolheu mal a profissão e que se arrasta nos corredores de um Hospital, como ave de rapina a sublimar as suas frustrações de vida…
Não sei se ainda lá está a Dona Albertina, eu já jantei, já aviei a receita e preparo-me para noite inquieta, porque o mais certo é ter visto fantasma porque humano não se trata assim , e cartão afinal é para desburocratizar e facilitar os procedimentos e saber quem paga ou não paga taxa moderadora…

27 julho 2005

hoje sou...pedaço de reticências que se desenham sozinhas

Sentei-me num tapete-de-sombra e voei em cada cor que se escondia de mim .
Tapete mágico, (de luzes-de-lua-nevoeiro, que me percorre as veias da alma, sem medos nem angustias, fundo), quase cristalino,
Vou,
Em estado-puro, num cavalgar desenfreado, sem rédeas, nem universos.
Sou saltibanco-de-fantasias, longe do Mundo…
Sou o Mar que me habita,
Onda-elefante,
Muro,
Pedaço de nada, de mim,
Volátil,
Mudo…
Voo, em tapete-sombra, embondeiro-muribundo, entre espelhos-do-eu,
e escrevo,
lá,
no alto, no (des)mim, nas estrelas do Mar-Egeu,
Hoje, sou o acaso,
Pedra solta,
Papagaio-de-papel,
Sou,

todas as letras que não se escrevem em mim,
Pedaço de alma,
In-verso,
Arlequim”

22 julho 2005

linhas de mão

Na palma da mão desenho areias,
em gotas de nada,
agarro-as liquidas,
desesperançadas…
Desenho linhas,
longas
no chão,
descompensadas…
Fogem desertas,
sem sombras,
desencontradas…
Desenho na palma da mão labirintos,
meus,
coloridos e vagueio-me nos passos,
não há ecos
nem gritos,
nem castelos-feiticeiros,
há uma luz nocturna que me leva que me viaja aos sons de uma guitarra que chora,
nevoeiros…
Na palma da mão desenho laços,
teus.
São ondas,
douradas
Que esvoaçam mitos
ao longe,
de longe
enamoradas…
Linhas abertas,
feridas,
vidas
que nos fogem
caladas,
perdidas,
sopradas…
Barco fantasma,
(falua,
barca,
bateira ou
moliceiro)
São linhas da mão…
gotas de areia,
desertos de água,
solidão,
flauta,
singela,
bela,
de pan…

oiço,
ao longe
de longe
violinos de Chopin

19 julho 2005

dúvidas

Entre as inúmeras possibilidades de acasos, em cada instante só te cabe Um, e nesse que é teu, gravitam outros incontáveis acasos que serão o Um de cada outro que te envolve O viver.
É nesse acaso, (sem dimensão para o olhar e o sentir) que uma simples flor, (desenhada na beleza de ser apenas flor), cabe na tua mão e simultaneamente não cabe no Universo, tamanho é o seu existir e a sua cor.
É assim que surge o Multiverso, contemporaneamente ínfimo e gigante…por isso devemos ter muito cuidado com o existir, porque os nossos instantes são determinantes para a Alma do Universo…

Nota: pede-se desculpa a quem lê, toda esta confusão exotérica. A ideia está embrulhada, labiríntica, mas estas coisas do imponderável, dos instantes e dos acasos são coisas de alma e essa não se deixa explicar, mesmo que ande distraída…
Vou olhar com mais detalhe esta coisa estranha do Multiverso / Universo, porque andei quase meia vida à procura do UM, e agora assim sem mais, sem pedir licença aparece outro UM simultâneo , paralelo "insomável "que me desordenou a serenidade do existir...

17 julho 2005

sem um fim

A vida não tem que ser uma vitória, uma incansável conquista, nem tem necessariamente que ter um propósito, basta que SEJA.
Só dessa forma nos conseguimos maravilhar com o UM, porque ele não é um Fim mas um Todo.

In “ apontamentos para um manual da serenidade ou como é tão fácil perdermo-nos no caminho quando confundimos o querer com o ser…

16 julho 2005

mestres

Vivo num país sem Mestres…
Não que os não hajam, mas porque todos o são…

In “apontamentos para um manual da serenidade” ou como a sabedoria não está na opinião que se tem mas como se transmite …

15 julho 2005

ingenuidades...

A consciência é a sombra colorida da alma. Persegue-a, delimita-a, com ou sem luz, abraça-a. Uma alma sem a sua sombra é como flor sem cor, existe mas não se sente…

In “ apontamentos para um manual da serenidade” ou como por vezes devemos deixar-nos ir com a ingenuidade do existir de mãos enlaçadas à nossa sombra-de-alma, vá ela por qualquer onde…

14 julho 2005

era uma vez...( desculpem, hoje só falo com crianças)

Colei,
estrela-do-mar,
entre as nuvens e o azul da noite,
e outra,
do céu,
entre as águas e o horizonte salgado de ondas e ventos e mares.
Cada uma com cor sua.
(Quem não gostou foi a lua,
que ficou sem pedaço de luz com que se passeia,
nua,
pela rua. )
Mas o céu ficou salpicado de estrela princesa
que queria ver o mar lá do alto,
onde se escondem os desejos...
E o mar,
iluminado de estrela príncipe, quase rei, de uma luz suave de Natal.
Foi nestas andanças, de lua e de estrelas
que encontrei maravilhado,
pequeno animal,
que já não sabia quem era neste espaço universal...
se cavalo,
(coitado),
marinho,
apaixonado , pela estrela que tinha desejos maiores que amar coisa de rabo enrolado,
se menino enfeitiçado por estrela que se fez ao mar.
Fosse o que fosse,
o pequeno animal,
estava encantado,
por se sentir assim,
pasmo,
baralhado,
por esta confusão de ser joguete,
peão,
de poeta desastrado
que pinta,
com o que tem à mão,
distraído,
estrelas em qualquer lado,
no céu,
no mar
ou no coração...

13 julho 2005

tonalidades brancas

Pintei um branco que só a gaivota sabe e salguei-me nos céus-vermelho-sangue…
Hoje sou “pôr-de-gaivota” que se esconde no horizonte-verde-mar…
Pintei um branco que só a dor sabe e tatuei uma lágrima doce que beijou o mar…

12 julho 2005

futuro(s)

Só há futuro se ousares…
De outra forma só te restam dias que se repetem ao ritmo da rotina, que se desfolham como um livro branco, em monotonias…
Se resistires a folhear as páginas brancas sem esboçares um sentir, sem te deparares com um impulso de um desenho, de uma letra, de um risco, então estás perdido. Enterra-te!
Mas se ousares um sentir, então nasce o NOVO e esse arrasta-te no futuro...

In " apontamentos para um manual para a serenidade" ou como tudo se pode tornar simples se nos maravilharmos com a emoção do desenhar o futuro através do sentir...

11 julho 2005

o grão de areia

Se fechares a mão e prenderes o que nela cabe, todo o Mundo te escorrega entre os dedos e o que te sobra , só existe para ti…

In “ Apontamentos para um manual de serenidade” ou como quando te aproprias de um grão de areia, todo o Universo se ri de ti…

10 julho 2005

forças

Se abres as mãos para sentir a força do vento, do mar e dos rios, porque não abres coração para sentir a força da vida?

In" apontamentos para um manual da serenidade", ou como não sendo possível agarrar a totalidade, é sempre possível senti-la...

08 julho 2005

africa

Há um pássaro negro em mim que pinta o céu de sol em esvoaços,
livres,
outro que me pesa em ecos-sombras
coloridos-de-lagrima,
tristes.
Águia-corvo de um mesmo voo que se agonia sem audácia
e pousa triste em terras,
longe,
de acácias,
rubras,
sem céu,
nem
asas...

07 julho 2005

odiosapiens

bailados amordaçados

A revolta contra a extinção do Ballet Gulbenkian resultou numa petição on-line. Será entregue ao Conselho de Administração da Fundação Calouste Gulbenkian.
Estou de acordo e assinei.
A última parte merece ser transcrita:

«É, na nossa opinião, um crime cultural contra o país. Temos noção de que o BG não é uma instituição pública. Sabemos que a Fundação Calouste Gulbenkian é soberana nesta decisão. Mas quarenta anos de vida – e que vida – tornaram o BG património nacional. E o património nacional, manda a lei, a ética e o bom senso, deve ser defendido. Esta extinção não faz justiça ao Ballet Gulbenkian nem ao seu público. Não faz justiça a Portugal. Nem faz justiça à Fundação Calouste Gulbenkian, grande farol de um país culturalmente tacteante. Pedimos, por isso, que reconsiderem a vossa decisão. Sob pena de ficarem para a história – da FCG e de Portugal – como os carrascos de um membro insubstituível do panorama artístico nacional.»

Para darem o vosso apoio basta acederem aqui:

http://www.petitiononline.com/bg05ext/petition.html

o guardador vagabundo

Vi um pastor,
sossegado,
caminhante...
Passeava flores,
divertido com o Universo…
Ah! Deus meu…e as cores do sorriso das flores…
Fosse eu pedaço,
verso,
estilhaço,
ou
sombra do pastor,
e era eu que ria,
quase palhaço,
deste dia, que nasceu,
aço,
fino,
aguçado,
de dor…
vi,
um pastor,
não de gado…
de flores…
Não tinha capela,
nem templo,
nem arado,
tinha um sorriso rasgado,
por estar ali,
descansado,
a vaguear o aroma das cores…

06 julho 2005

descuidos

As nuvens (des)azularam o céu com histórias gotículosas que se desfazem na pele como brisas de afectos. Acariciou-me uma que me disse sem ventos nem cerimónias “ …andas desatento-de-cores…mergulha-te no desdentro e vive cada palavra que não ousas…”

In “ Apontamentos para um manual da serenidade”, ou como devemos olhar para fora da concha-do-eu para sentirmos a Vida que se nos oferece e nos empurra no existir…

desazularam
= pintalgaram de branco o céu ( emitiram sons de segredo no sentir de quem escreve)
goticulosas = tentação de quem escreve de confundir o leitor, com gulosas ( gotas pequenas gulosas? ávidas de se ouvirem? doces? ternurentas?) De qualquer forma a imagem é de pedaços de nuvem que nos beijam a pele...
desdentro = influência da literatura africana, cada vez mais presente na minha forma de estender as palavras no sentir e de reinventar sentidos ( Mia Couto, Pepetela…) que na verdade apenas pretende dizer, para fora ,de dentro para fora…sai de ti...

Peço desculpa ás palavras de as aprisionar em sentidos. Não é habito meu impor paternidades...

05 julho 2005

somatórios

Onde estás?
Aqui!
Onde?
Entre o que sentes e o que vês…
Ah! Estás no Eu!

In “ apontamentos para um manual da serenidade” ou como uma ausência nos desenha o Eu, ou como somos um somatório de ausências, ou ainda como o vazio nos envolve em caminhos e nos leva no ir...

04 julho 2005

...

Não escrevo.
Pesam-me as palavras que esvoaçam escuras.
Não gosto de palavras sem cor.
Não escrevo.
São silêncios de dor…

não uso tempos, nem agendas ou instrumentos outros que meçam pedaços do existir. é jeito meu. por isso passar de um ano para o outro é cousa...