28 novembro 2003

na corda bamba

Cortei o chão em passos fundos, com a raiva de uma charrua, em linha recta sem destino, com a alma de saltimbanco em equilibro trapezista.
Silêncio, por favor!
Não! não toquem o tambor, fechem os olhos, deixem-me olhar sozinho o caminho!

27 novembro 2003

pedras sem vida

Caiu no chão
só,
desamparada,
sem mão estendida,
sem nada
vazia,
sem escada,
lágrima,
contida,
encharcada.
silêncios
de pedra,

desamparada.

26 novembro 2003

o desgaste da vida

Os acasos colocaram-me perante a decomposição da consciência, obrigando-me a RE-VER o conceito de realidade sob o prisma da loucura, e aceitá-la de forma paciente e reflectiva.
Convivo com a demência, causada pelo desgaste da Vida, que se arrasta no dia, parada num Tempo “Alzaimeriano”, onde a percepção da "visão" toma outros contornos.
Entrar e perceber a vivência de um idoso é abrir uma porta para uma dimensão desconhecida que nos obriga a vasculhar a sensibilidade no nosso mais profundo conceito de humanidade.
O ritmo das ilusões, intercalam-se no “surreal”, ao ponto de nos envolver num quadro sem cor, onde tudo é possível, e o inexistente toma forma, volume e vida.
Conviver e aceitar esta relação com o desmoronar dos sentidos é um desafio ao Amor, onde o sentimento deixa de ter dimensão.

20 novembro 2003

esmola

Fitou-me em olhar fundo, criança cigana, seca de lágrima com face cortada em rugas de vida. Pedia beijos de esmola e caminho para andar sem olhar o chão...

19 novembro 2003

dúvida ocidental

Quando se admira o Mestre, fica-nos a dúvida se devemos correr a seu lado, ou usando o seu Saber, cortamos a meta à sua frente...

18 novembro 2003

afectos

Os afectos são como lâminas afiadas, ora deslizam suaves como pena pelos sentidos, ora golpeiam, sem aparente dor, em lágrimas de sangue, em choro sem som.

17 novembro 2003

Duas papoilas, uma mesa, e um pensador ausente que não queria ficar no quadro, mas ficou...

Uma enorme vontade, transfigurada em impulso, devolveu-me as cores, os pincéis, e uma luminosidade, que transformou uma esguia tela em duas grandiosas papoilas, vermelho amarelo, que se acomodaram no quadro. Ao longe, em plano segundo, nasceu uma mesa elíptica que se metamorfoseou em silhueta humana quase transparente. Traço contínuo de desenhador impaciente. Em jeito de fundo, em cama de cores, pincelei tons de amarelo-verde torado de forma a por as papoilas a dançar à frente do pensador transformado em mesa. Não me perguntem qual o significado do impulso materializado em cor, não sei resposta. A verdade é que naquele momento era só eu e as cores que se envolveram numa fuga ao atropelo dos últimos dias. É uma forma diferente de nos vermos reflectidos no espelho e de nos descobrimos no silêncio como quem vasculha a alma que se encolheu com o frio que nos cegou, no quotidiano que se nos impôs, ao som de uma trovoada desmedida.

16 novembro 2003

retrato de um domingo

A falta de tabaco, que permitisse alimentar a pequena fornalha que me aromatiza o pensamento e confesso o bem-estar, encaminharam-me os passos para uma das catedrais do consumo, espalhadas por esse país fora. Sim também esta pequena cidade algures no coração deste pequeno País tem uma, aberta domingo, dia de repouso e reflexão. Quando se pensa em tabaco, (mesmo que inalado por cachimbo, forma mais pachorrenta de dar cabo dos pulmões e de outros sistemas naturalmente robotizados que nos mantém de pé para saborear os limitados Domingos que nos foram destinados), surge a ideia da inevitável cafeína, por isso lá fui eu, resoluto a sentar-me numa das mesas, bem no centro daquela impessoal floresta de mesas e cadeiras, que a dita grande superfície comercial disponibiliza aos seus fiéis crentes. Sentei-me, envolvi-me nos odores do fumo que expelia e serenamente, calmamente, descontraidamente olhei. Na já ilustrada selva, centenas de olhos, debruçados ora em tigelas enormes, ora em pedaços de pão, ora em mini-pratos , besuntados de gordura, naturalmente também eles, serenos, e descontraídos ali estavam a consumir o seu Domingo, como quem rasga mais uma folha do calendário da Existência.

15 novembro 2003

rotina

Os olhos frios, fixaram-me, como animal furtivo que na escuridão da selva segue o movimento da presa que se esconde no vento. Paro. Oiço-me, em batuque acelerado e interrogo-me. Silenciado com a ausência, sinto-me parte de um jogo para que não fui convidado. Já não me olham. Agora quem fita é o medo. O impulso corre o chão que me foge e fica longe, escondido no escuro. Abro a torneira, que também fria me acorda, e se mistura em gestos quotidianos, que nos prendem à rotina do amanhecer.
O dia começa, e já não me interrogo, sigo. Só mais tarde me reconheço no olhar. É assim todos os dias. É assim a rotina de quem se perde no horizonte só depois de se reconhecer no olhar.

09 novembro 2003

quando não estamos prontos para nos desnudarmos

“Qual é a sua opinião?”
Atordoado, com a interiorização da pergunta, apenas se conseguiu questionar. “ Que raio de interrogatório é este?” Foi o que lhe veio à imagem, porque as palavras estilhaçaram-se sem sentido. “ A minha opinião?”, “ Mas para que querem a minha opinião?” Ficou incomodado, remexeu-se frenético na cadeira e zangou-se com o cachimbo (fiel companheiro) que inoportunamente resolvera apagar-se.
Não sabe ao certo quanto tempo se ausentou entre a pergunta e a resposta que não tinha.
Levara a vida inteira a gerir consensos e opiniões alheias e agora, inesperadamente queriam apoderar-se dos seus pensamentos, a ele que os guardava ciosamente como tesouros?
Não, não estava preparado para se desnudar!
Reacendeu o cachimbo, encolhido na palma da mão, interiorizou o aroma e expeliu lentamente os pensamentos em fumo azul cinzento. Ali estava a sua opinião, materializada em nuvem. Se a quisessem de facto, voltariam a perguntar ou juntavam as palavras que lentamente se eclipsavam na atmosfera densa daquela sala recheada de executivos e de decisores dos destinos de ninguém.
Quando fixou os olhos nos olhares, sentiu o silêncio da espera,”querem ver que a querem mesmo?”, pensou. Sentiu-se encurralado, endireitou os papeis desalinhados e fez ouvir o bater das folhas na mesa infinda e recolocou-os, direitos e perfilados. Estava terrivelmente cansado.
Sabia que dissesse o que dissesse, a discussão continuaria no mesmo diálogo de surdos, porque cada um continuava a ouvir se a si próprio. Tinha sido sempre assim durante toda a sua vida, e hoje não seria diferente. Era esse o seu grande segredo, porque geralmente, era o único que ouvia, media, ponderava e decidia, longe do barulho, sossegado com o seu fiel companheiro de reflexões.Voltou a reacender o cachimbo, “ Até este hoje embirra comigo!”, pensou. Pausadamente, solenemente, disse – “o gato pintou-se às riscas azuis!”.
Como esperava, o gorgolejo opinativo continuou, terminando horas depois, quando todos, cansados de se ouvirem a eles próprios, acordaram data de nova sessão…

07 novembro 2003

escultura colectiva

Quando o vazio nos enche a alma de interrogações, normalmente refugiamo-nos em recordações que tentam iludir as percepções do presente, e por momentos, breves é certo, julgamo-nos senhores da vida. Controlamos os sentidos, escolhemos as cores que envolvem o olhar, e lá no fundo, bem no fundo do sentir, descobrimos que sabemos sorrir, que fomos premiados por afectos, e que essa existência nos permite jogar aos dados com a vida.
Não fossem essas recordações, essas viagens por uma realidade que é só nossa, não conseguiríamos perceber a infinidade de acasos que nos moldaram o carácter. Somos mais do que uma simples escultura, de um único artista, de um único pintor, somos obra colectiva que não existiria se um único dos acasos que se cruzou na nossa vida se perdesse noutros caminhos, noutras direcções, noutras existências.

06 novembro 2003

sem timoneiro

Preciso de Espaço para sentir o TEMPO e de me abstrair desta muralha infinita que me desfoca os sentidos.Invento-me num barco à vela, sem timoneiro, orientado pela fuga.
A viagem perde-se nos atropelos das recordações que afundam o barco e me devolvem, sem pedir licença, para um espaço que me agrilhoa o VER!

04 novembro 2003

exercício de liberdade: introdução

Quero andar por aí. Invisível, ausente, submerso, para sentir o Vento, os sons e as cores. Não me quero em Mim, que me enegreço!
Não me digam o nome, não me vejam os olhos, não me oiçam os gritos. Hoje, pura e simplesmente não Existo!

03 novembro 2003

a vida de um lápis

O lápis corre à procura da imagem que sem nexo e sem harmonia vai desenhando o Tempo. Salta barreiras que o autor esconde e indelicadamente, põe-se a escutar, como quem sorri ao som de uma melodia, escondido atrás de uma flor.
O ambiente criado, pelo lápis paciente e sapiente, soltam o autor, que animado, baralha as palavras e lança-as no papel como quem se diverte no Jogo da Vida.
Não procura o sentido do que escreve. Está ali apenas a fazer companhia, aquele lápis irreverente que lhe espicaça a Consciência e as imagens que reteve do caminho. É uma companhia silenciosa que os complementam. Vivem à procura do entendimento e do respeito pela comunhão que lhes alimenta a poesia. Seguem-se, unos, com o mesmo ritmo, com uma só sombra.

não uso tempos, nem agendas ou instrumentos outros que meçam pedaços do existir. é jeito meu. por isso passar de um ano para o outro é cousa...