27 janeiro 2004

retracto de uma insónia muda

Não há nada pior que uma madrugada chuvosa e fria em que o corpo insiste em fingir que dorme e a cabeça em fuga ao sono, emite pensamentos desconexos e inconscientes, como quem brinca com o cansaço, regados com sabor a fel.
Interromperam-me o sono, imagem de livros, retidos na memória de uma infância rodeada de estantes e lombadas de saber, oriundos de poetas e escritores dispostos sem Pátria. Três livros solitários, sem relação conexa, alimentaram-me a insónia.
A “Queda” de Camus, que me desafia para a leitura à mais de trinta anos, um catálogo de uma exposição de pintura, provavelmente no Louvre (falava francês o dito catalogo dos anos cinquenta de século passado), do qual recordo a capa, branca amarela (do uso), com um quadro de Cezane ( julgo), com um homem a jogar às cartas, ( recordo também comentários meus, de uma infância interrogativa e irreverente , “como é possível fazer um catalogo de pintura a preto e branco?”), e finalmente o “Velho e o Mar” de Hemingway, livro quase gasto, quase roto, não fosse ele de bolso e visivelmente viajante, tão cansadas estavam as suas folhas.Ao bom estilo de filme mudo (as insónias conseguem ser ainda mais mudas que os sonhos), estes livros, estas capas, vaguearam-me a madrugada, sem razão aparente, fugidos de uma memória cansada, num não menos esgotado corpo.Finda esta apresentação, quase publicitária, surgiram em forma de fantasma palavras que corriam atrás de mim, em bicos dos pés, em segredinhos de meninas adolescentes e em risinhos cobardes (continuamos no entanto sem som). Seguiam-me e escondiam-se, quando irritado, me voltava de fúria.
E elas escondiam-se!
E elas riam-se!
E eu não dormia!( e o ciclo repetia-se quase sem fim...)
Por fim, e já esgotado, as palavras que corriam como sombras chinesas, juntaram-se, ditas por um Jesuíta, em domingo de homilia “ Ousa! Ousa ser as palavras que dizes! Ousa ser as palavras que escreves!”
E foi assim que me levantei hoje, enfeitado com olheiras, a fingir que não ouvi o que a insónia me obrigou a Ver ( e no entanto era muda o raio da insónia!), e entrei sem vontade pelo dia, que me esperava, de braços abertos e sorriso cínico.

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não uso tempos, nem agendas ou instrumentos outros que meçam pedaços do existir. é jeito meu. por isso passar de um ano para o outro é cousa...