05 fevereiro 2004

num banco de jardim, à sombra de uma acácia rubra

Sentou-se em banco de jardim, como quem procura silêncios. Escolheu o fresco de uma sombra de acácia rubra e abriu livro de capa coberta, inibida, que se recusa expor a intimidade do nome, do título, dos ambientes e da relação com as letras que mantêm um com o outro. Calmamente, solenemente, degusta as palavras, ausente de tudo. Concentra-se na criação dos espaços que as palavras lhe sugerem, embebido na cumplicidade que a história lhe conta com os olhos.
Divertem-se, debaixo daquela enorme acácia rubra, deslocada no espaço e no tempo. Nem ele, nem ela pertencem aquele cenário. Só o banco e o livro parecem entender o paradoxo da interligação emocional daqueles dois.
Divertem-se, o homem, o banco, o livro e a acácia. Até o ar, fez o favor de não estar demasiado húmido, demasiado quente, demasiado quieto. É suave a imagem (bela, diríamos nós que os observamos).
Em continuidade (como aliás é o próprio destino. Bem sei que nem sempre é tão suave como desejaríamos, mas no entanto, continuo. Interminavelmente continuo!), surge personagem quinta, que aproveita a quietude do cenário, do banco e da sombra (que já entendemos não ser Sombra qualquer, porque rubra!) e senta-se.
Quebrada que foi a intimidade, esguelham-se de curiosidade, os olhos (ainda cheios de palavras, pensamos nós, sem no entanto interferir com a história que se desenrola à nossa frente) a interrogar, quem ou o quê, se atreveu a interpor-se e a interromper aquele momento sagrado? (adivinhamos que sagrado, só para os protagonistas,mas o melhor é deixarmos de ser embirrentos e deixar correr a história).
Surgiu homem idoso, de olhos grandes, fora das orbitas, interrogativos e irrequietos, que tudo olham, tudo aspiram (mesmo o nosso personagem se sente incomodado, porque fecha o livro com cara de enfado).
Olharam-se! Fundiram-se em incómodos (até o banco sentiu o que só nós vimos).
“Tem um lápis?” pergunta, o de olhos sôfregos de vida.
Sem sons, sem resposta ( e sem perguntas), entrega-lhe um lápis mendigo, sumido, quase sem bico (Ranhoso, mas fiel, pensou ele, dizemos nós, que continuamos intrometidos e chatos, a observar a cena, longe da sombra rubra e calma, como não é demais referir).
Num ápice, num instante que só o tempo sabe medir, o nosso estranho personagem, em papel surgido do nada (estávamos desatentos, não há duvida que perdemos o momento da chegada do papel. Ainda por cima, nem demos conta, mas é personagem sexta desta história), em gestos frenéticos começa a desenhar.
Traço, atrás de traço, nascem ruas, prédios e acomodam-se volumes em espaços que só ele sabe. E o papel cresce, e a cidade nasce, a um ritmo que deixa assustado o nosso leitor, que na verdade já o não é à muito tempo.
“ É arquitecto!”, pensou, “ talvez poeta?”, questionou. “Artista!”, convenceu-se!
A cidade que brotava naquele papel, sem parar, só podia ser obra de um arquitecto-poeta-artista!
Estava lá tudo, até um jardim de rosas, ruas inteiras a esconderem-se das árvores, das esculturas e dos prédios, em contrastes inimagináveis.
O frenético criador não parava, e o lápis era já dedos sujos, mas o universo de papel e de sombras não parava, tomando dimensões quase reais, até que,( num momento que não sabemos precisar, muito menos quantificar),TUDO PAROU! ( e quanto nos é possível observar, não foi falta de lápis, pois mesmo sumido, ainda riscava, encravado numa unha do artista).
O arquitecto-poeta-artista, parou assustado ( os olhos não enganam!), suado, louco, demente, apavorado!“ Que foi Mestre?” ( Nome muito mais adequado, temos que admitir, que esta lengalenga comprida, de Arquitecto-poeta-artista)“Mestre! Diga alguma coisa, por favor! Porque parou? Porque se assustou?”
Aterrado (e nós também, observadores passivos, é verdade, mas qualquer um se assusta com tamanha brutalidade no olhar, sobretudo vinda de um poeta), vê o Mestre agarrar no papel e em fúria, primeiro, em desespero incontido, depois, rasga-lo, estilhaça-lo, até não restar, sombra, janela, rosa ou árvore, daquela cidade, criada de um só folgo, de um só sopro!
“Porquê Mestre? Porquê?”
“ Não consegui, meu filho! Não consegui imaginar as pessoas com que gostaria de enfeitar a minha cidade. Falta-me a imaginação!”
A acácia moveu-se, a sombra fugiu, e os dois ficaram a olhar o vazio, sem saber que foram personagens de uma história que não estava escrita, e que se escondia entre a capa e forro, de um livro tímido, que não gostava de mostrar a intimidade a qualquer um, mesmo aquele que se senta num banco do jardim, à sombra de uma enorme acácia rubra que não devia estar ali…

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não uso tempos, nem agendas ou instrumentos outros que meçam pedaços do existir. é jeito meu. por isso passar de um ano para o outro é cousa...