10 outubro 2004

gavetas esquecidas

Não sei se é influência da Inconformada ou não, mas hoje ao som de uma chuva que canta sem piano, mas que encanta em voz de embalar, fui às minhas gavetas, onde guardo pequenas colecções de outros pequenos nadas. Debaixo do forro escondiam-se algumas folhas manuscritas de mim, de anos outros, sem ordem mas datadas. Diz quem escreveu serem sentires de 1985 a 1997. Poucos, não mais que meia dúzia porque os que se escreviam com ordem, desapareceram, mas isso é história que não quero recordar. Peguei num que datava de Setembro de 85, mas que me levou algures para os anos sessenta. Li, o que se escreveu, assim:

Quando era pequeno tinha um urso de peluche. Era criança. Todas as crianças têm um peluche. Era o meu refúgio. Era a ele que confessava os meus medos, as minhas angústias, as minhas lágrimas. Quando os olhos se riam, ele ficava por ali caído, junto à cama, sempre disponível para me dar conforto nas noites escuras de pesadelo.
Hoje é apenas uma recordação. Consumi-o até já não ter olhos, braços ou pernas. Quando a palha do seu corpo lhe trespassou a pele passou a incomodar-me. Deitei-o no lixo, assim sem mais, sem despedida nem nada. Estava longe de imaginar que um dia me sentiria urso de peluche. Como se deve ter sentido triste o meu urso…

Que raio de jeito, tenho eu, que não há meio de me entender com o Mundo.
Queria poder fechar os olhos, inventar-me, viver com um sorriso na alma e afastar de vez esta constante tristeza de me sentir só.
Lembro-me de um dia com seis anos chamar o meu pai ao quarto, fechar a porta e pedir-lhe para se sentar na minha cama. Tinha uma coisa muito importante para lhe dizer. Senti-me muito importante e muito senhor da minha verdade. Solenemente disse-lhe: “ Pai! Hoje morri,….e amanhã também!!” O silêncio que se seguiu , ainda hoje o sinto. Estava à espera de um abraço, um conforto, um beijo. Ouvi “ Tenho muita pena, meu filho”. Ali fiquei, sozinho com a minha verdade. Nesse dia apertei o meu urso com muita força.
Já não tenho urso para abraçar e por aqui ando escondido nos meus caminhos, a tropeçar nas minhas pedras de olhos bem abertos, como quem se perdeu e não sabe que direcção tomar…

4 comentários:

musalia disse...

Belissimos excertos das tuas memórias, Almaro! E tão repassadas de tristeza! Não quero macular tanta beleza...
Beijinhos.

nobody disse...

Mais ainda que o conteúdo - belissimo - fascina-me a forma. Notável!

Fátima Santos disse...

Da relação menino/pai, surgiu-me o que um dia escrevi (talvez num contexto mais real, mas não tão diverso assim):"No branco do teu desespero esvaio-me de medo."
Um abraço!

lique disse...

Aposto que morreste e renasceste muitas vezes. Que perdeste a direcção e voltaste ao caminho, novamente. Como tem que ser enquanto vivemos. Beijos

não uso tempos, nem agendas ou instrumentos outros que meçam pedaços do existir. é jeito meu. por isso passar de um ano para o outro é cousa...