02 outubro 2004

um quadro, o meu, de hoje...

Com as cinzas do dia, pintei um quadro. Uma enorme tela com traços a carvão. Uma tela cheia de sombras entre o negro e o cinza-prata. Imaginem um rio de manhã fria com o vale coberto de bruma e céu pesado, agora acrescentem chuva, daquela que se avista ao longe e que parece pinceladas de Van-Gogh, mas sem cor. Depois entretive-me a polvilhar o quadro com números, desenhados, muitos, variados, tombados, deitados, minúsculos, quase brancos, negros profundos, deformados. Sempre cinza-bruma, da cor do meu nevoeiro. Salientei uma ou outra sombra, um ou outro relevo. Pontos de fuga muitos. Escondidos pelos números. Do lado esquerdo em pormenor, esbocei em desenho quase técnico um sistema de roldanas denteadas, mecânicas. Humanas. Afastei-me do quadro. Senti-lhe o cheiro de floresta queimada. Quase ouvi o choro de um crispar em silêncios dos cinzentos, das cinzas. Ente o “UM”, quase negro, quase deitado, e o “SETE” que se debruçava em “S” por cima de um TRÊS, agarrei num verde-verde e desenhei um folha a desabrochar do cinza. Sorri. Não era o verde que era belo no meio das sombras, era a VIDA que atropelava a morte e o Homem…

8 comentários:

BlueShell disse...

Caríssimo amigo...às vezes os teus textos assustam-me; belos sempre! Mas de uma intensidade tal...que me assusta...bjs

almaro disse...

blueshell: sabes, vezes há que sinto a ingenuidade de pôr as pessoas a pensar. Não pretendo assustar, mas a olhar por fora e para dentro. Não pretendo mudar nada, a minha ingenuidade não é profunda, mas aqui e ali acredito que temos que nos transformar para não haver tantos cinzentos cobertos de negritude.

almaro disse...

lolita: estes meus desenhos, estas minhas telas são pintados com palavras, para que cada um dos olhares que os fixam os redesenhem com as suas cores. Os outros, os que não tem palavras, só cores e traços, esses, são o "instante" do meu olhar...

BlueShell disse...

Então...posso dizer que fiquei a pensar...
E respiro
o sonho,
a esp'rança
que ponho
no dia que diz
que hás-de ser
Tu, herói,
Duma história feliz...

almaro disse...

blueshell: Hoje estou com queda para te mudar o sentido das palavras; assustar/pensar, agora heroi/personagem (viva sim, com vontade, eu sei, mas heroi não. Ninguém é heroi por fazer aquilo que acredita...)

almaro disse...

blueshell: ecom tudo isto fui mal educado. obrigado pelas palavras, sobretudo uma, ESPERANÇA.

lique disse...

Estava a ler e a imaginar o teu quadro pintado com as cinzas do dia. Tão cinza-bruma! Perguntei-me como ias sair dali. Saiste pela vida, isso é o mais importante. Um beijo

musalia disse...

Interpretação espantosa do ciclo da vida! Construíste uma geometria de vida decorrida, vivida entre pontos de fuga, e números mágicos, 1, 7, 3! Declinio no cinza e nas sombras esfumadas, tal como se esvai a vida. Com a intensidade desse traçado cinza/negro como uma belissima tela a carvão. Renovação no verde. O que tem de morrer para possibilitar um novo ciclo.
Beijinho, Almaro.

não uso tempos, nem agendas ou instrumentos outros que meçam pedaços do existir. é jeito meu. por isso passar de um ano para o outro é cousa...