18 janeiro 2005

o príncipe

Canhane. Não sei o significado da palavra, sei que é nome de terra de África lá para as margens do rio Limpopo, muito antes de chegar ao Indico. Terras vermelhas, quentes. Terra de gentes de capulanas multicolores. Terra de príncipes, isso digo eu porque a fantasiei assim ao ver uma mulher de joelhos a falar com um homem cheio de rugas e cabelo branco. “Fala com o pai…”, foi a tradução dada à imagem vista.
Eu era menino e imaginei aquele homem, príncipe porque eu não falava com o meu pai de joelhos a olhar o chão. Foi nesse dia que me apaixonei por África. A capulana era de tons azuis fortes, quase céu, a terra já lhe pintei cor, mas o que me entrou pelo sentir foi a diferença. Ali, no meio da savana africana, longe de tudo o que conhecia, existia outro mundo, de príncipes, pensava eu, que era menino.
Canhane, tinha uma cubata no centro, grande e outras mais pequenas ao redor. A apoiar os telhados de capim, erguiam-se varas de pau pintadas ás riscas de várias cores, umas azuis, outras vermelhas, outras talvez verdes ( a recordação é difusa que o tempo entretanto desbotou as cores do sentir), todas separadas por riscas outras, brancas.
Do nada apareceu um pequeno cão que nunca mais me largou, branco, castanho-antílope e uma única ponta preta no fim da cauda, a divertir o olhar e o próprio cão.
Ficámos colados um ao outro. O mesmo princípe que falava com a filha, disse que era meu porque ele me escolhera, dois maços de cigarros e “dois quinhenta” e ele poderia partir para outros mundos com o menino que o não largava.
Só podia ter um nome aquele cão que seguiu o menino que o fitava em terras quentes de África. Canhane, ficou de nome.
Era diferente de todos os cães, era príncipe, não tinha dono, comia lagartos, osgas, camaleões, sapos-de-chuva ( nome nada cientifico, inventado por mim, porque só apareciam depois das chuvas) e pombas que aprendeu a caçar sozinho na cidade grande. À noite esperava sorrateiro o menino que à socapa fugia pela janela, no silêncio da noite para brincar com o seu príncipe. Nas noites que o menino, cansado das correrias do dia não saltava pela janela, uivava a noite toda. Não havia quem o calasse. Era príncipe aquele cão que nos emprestava a companhia.
O Cão não era meu, eu é que era, e ainda hoje o sou, o Zé do Canhane. Era príncipe !
Hoje trinta anos depois tenho outro cão, é o meu cão, é o cão do Zé.
Não é príncipe este cão que se enrosca a pedir afectos e olha tímido para o chão.

5 comentários:

Estrela do mar disse...

...acompanhas-nos nesta ilusão?...

beijinho*.

Anónimo disse...

Chegando através de um "Devaneio" li a tua história entre a realidade ou a ficção de uma infância vivida ou sonhada. O certo é que é encantadora. Adorei. Amita //brancoepreto

red hair disse...

Também as minhas recordações de África que me viu nascer estão um pouco difusas, algumas cores e alguns cheiros perderam intensidade, se bem que outros jamais os esquecerei!Adorei o teu Príncipe! (P.S. Acabei por não te dizer que fiz referência às tuas cores naquele devaneio da Girassol sem pés nem cabeça, lá no Devaneios!Mas creio que ainda vou a tempo...) Beijo.

almaro disse...

Estrela do Mar e Amita:
É uma história: a do Cão, a do Zé e a de Canhane , os três coexistiram num acaso. Canhane, terras de Gaza junto ao Limpopo, não muito longe de Massingir, desenhada no mapa de Moçambique, ano do encontro, 1973. O cão, esse acompanhou-me ano e meio, depois, seguimos o nosso destino, ele, eu, e Canhane, que sendo terra, também tem destino. Continuo, para muitos, o Zé do Canhane, o destino deste conheço-o.
O Cão,Príncipe, era por certo, foi sempre assim que o senti, o Primeiro de todos os cães, porque livre e amigo. Não é sonho, é recordação de passos dados, vividos e sentidos. É história de criança, é verdade, por isso a conto.

Fátima Santos disse...

África! África oh! meu amor de infância! cheiros e cores ficam-nos outros...amores...fica tudo todos... diferença marcada... o quente a chuva outra outro...Deliro? talvez...África nunca se é gente grande crescida em África...Deliro?! talvez...

não uso tempos, nem agendas ou instrumentos outros que meçam pedaços do existir. é jeito meu. por isso passar de um ano para o outro é cousa...