01 maio 2004

o passeio de um duas-patas-com-memória

Olá!
Oiço em eco, como quem anda distraído, e continuo sem interrogação, o caminho que me levam os passos, naquela pequena mata, coberta de trevos e pintas amarelas...
Olá, estou aqui! Não me ouves?
Senti interrogação no eco, e fiquei em semi-alerta, mas não suficientemente curioso, para me desviar da minha própria ausência.
Eh! Tu aí, bom dia!
Não! Era demais, já não era eco, alguém estava de facto a entrar-me pelos sentidos, e queria-me. Parei em escuta.
Estou aqui! Senta-te no chão! Sei que gostas de te sentar no chão!
Olhei, rodando-me, pois via-me sozinho, naqueles verdes, que dançavam leves.
Aqui em baixo. Senta-te, já disse. Olha, lá ó coisa, disse meio zangado, se é que se pode estar zangado numa pequena mata, cheia de verdes-novos, aliás, como sabes que gosto de me sentar no chão?
O rapaz está doido! Ouve lá ó tu que tens mania que só tu te vês, não percebes, que não sou eu que te falo, mas que é a tua memória que me escuta?
Era demais. Depois de uma semana de tormentos, ter que aturar delírios, era um abuso da natureza. Baixei-me e teimoso, não me sentei no chão, mas vi uma delgada flor amarela-azeda , que me fitava atrevida. Deitei-me no chão, em posição de criança que contempla. Barriga no húmido da mata, cabeça apoiada nas mãos , cotovelos pregados e pernas levantadas a fingir que andam no ar. Na verdade gosto de me sentar no chão, Deitado de costas também é bom, lembra-me passeio em que descobri o céu, de mão dada com o meu pai, um dia, numa noite escura de verão, numa clareira de um pinhal, perto da cidade grande...
Eh!, estás parvo ou quê, então?, eh, estou aqui!
Ouve lá ó azeda, que me queres? Porque me vens a chamar desde que aqui entrei a passear-me? Aliás como é que estás aqui, se eu te ouvi lá no outro fundo, e não neste?
És mesmo um duas-patas-com-memória!. Não vês que nós somos todas um. Só vocês com a vossa memória é que tem a mania de serem únicos. Se nós todas , não fossemos só um, como seríamos tapete amarelo que pinta esta clareira de verdes trevo, que tanto gostas de olhar? Ou não te lembras o quanto gostavas de sentir o nosso azedo pendurado em amarelo?
Calma aí, menina-flor-azeda, aos anos que não me azedo em amarelos!
Lá estas tu! Já te disse que somos todas um e sempre a mesma, hoje , ontem e por aí fora. Somos semente, que pinta os vales. A azeda que te refrescava em arrepios, em menino, era eu.
Mentirosa! Aldrabona!Refilei, pouco convicto. Aquela outra ali, não és tu!, o amarelo dela é mais claro, mais azedo que o teu!
Não percebes, ou não queres perceber, ó duas-patas! Enquanto não entenderes que eu sou muito mais do que a cor que vês quando me fixas no olhar, nunca perceberás que o meu amarelo-azedo, não sou eu, mas sim todos os outros, mais os verdes que nos nascem em moldura.
Escusas de te sentar no chão a julgar-te criança, e fingir-te poeta! Vai! Continua os teus passos e entretém-te com o Eu e não te oiças no eco do teu olhar. Vai!
Levantei-me e fui cabisbaixo, sem reacção, atordoado. Primeiro lento, mais apressado depois, meio ausente no final.
Volta, volta amanhã, volta quando quiseres, oiço o eco em cores amarelas a imitar as estrelas que em menino vi de mão dada com o meu pai, numa mata perto da cidade grande...

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não uso tempos, nem agendas ou instrumentos outros que meçam pedaços do existir. é jeito meu. por isso passar de um ano para o outro é cousa...