13 junho 2004

véus

Há dois anos iniciei leitura de um livro (O sentimento de si de António Damásio), interessado nestas coisas do sentir. Percebi que se tratava de obra de alquimista (desculpem esta minha mania de dar sentidos outros a palavras antigas de uso. Neste contexto falo de químico da alma, uma vez que até à página lida, se pretendia demonstrar o quanto o sentir era fruto de reacções bioquímicas, e coisas outras, naturais, claro, pois falamos de cientista). Parei páginas, poucas, ainda o livro ia no início, há livros assim, que sendo profundos, nos obrigam a paragem até conseguirmos digerir a mensagem, tão importante se torna, no nosso viver e no nosso questionar, e que se não for convenientemente descodificada, arriscamos a alterar todo o nosso conceito de vida (aconteceu-me este fenómeno, de interromper leitura duas vezes, a presente, e em livro de Kafka, de nome Metamorfose, esse continua fechado, fiquei no titulo…). Este, repito de alquimia, de cientista conceituado nestas coisas da mente, parou-se nos olhos e no sentir, nestas palavras, “Por vezes, usamos a mente, não para descobrir os factos, mas sim para os esconder. Usamos uma parte da mente como um véu para evitar que uma segunda parte da mente se aperceba do que se passa na primeira. Este véu não é forçosamente intencional – nem sempre escondemos de propósito – mas intencional ou não o véu acaba sempre por esconder. Uma das coisas que o véu esconde mais eficazmente é o corpo, o nosso corpo propriamente dito, tudo o que lá se encontra dentro, as entranhas. Tal como um véu que cobre o corpo para manter o pudor, mas não o encobre completamente, o véu que falo esconde da mente os estados interiores do corpo, aquele que constituem o fluxo da vida enquanto esta vagueia na jornada do dia a dia.” Isto abana, porra! (termo raramente usado por quem escreve palavras do sentir, normalmente mais suaves mas que se justifica face ao abanão provocado), (acreditemos então). Ficou a germinar dois anos o entendimento das palavras, e hoje, percebi que para além daquele, há outro véu, o que esconde da mente não o sentir (partindo do pressuposto que o sentir é uma reacção, boa ou má, um reagir ao que vem de fora para dentro, e se encontra intimamente ligado aos sentidos e como consequência ao corpo, e pelos vistos químico), mas o sentimento, seja ele químico ou não, que vem de dentro para fora, e não precisa de sentidos, é o véu da Alma. Falta determinar de onde emana este véu que encobre eficazmente, o viver, da plenitude do ser, e intencional ou não, também este véu acaba sempre por esconder os fluxos do existir. Percebendo isto, voltei a abrir o livro, e recomecei leitura, vamos ver por quantas mais páginas, para já promete ser desafio ao tempo, e aos véus que nos cobrem sem pudor a vida que se nos cola ao ver.

(nem todos os dias estou tão confuso no escrever, há dias assim, valha nos a paciência…)

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não uso tempos, nem agendas ou instrumentos outros que meçam pedaços do existir. é jeito meu. por isso passar de um ano para o outro é cousa...